terça-feira, 17 de novembro de 2009

um pequeno conto

O paciente entra. Cumprimenta a psicanalista. Aproxima-se do divã. Durante o caminho, perguntara-se se efectivamente existiria esse divã. Verificava agora que não era um mito. Estava ali. A psicanalista sentou-se na cadeira, ficando invisível para o paciente que agora estava deitado no divã. Não havia necessidade de grandes introduções, apesar de ser a primeira consulta do paciente. Ele fora para ali reencaminhado por uma grande amiga, mais velha, que achara que seria boa ideia ele ter uma conversar com aquela pessoa- a psicanalista.
Ele está agora deitado no divã. Acende um cigarro. Era proibido, mas a psicanalista concordara, após este lhe ter explicado, por telefone,que facilitaria em muito a paz no seu estado de espírito. Começariam então
_Doutora, não sei o que estou a fazer aqui… ou melhor… sei. Sei que estou aqui para tentar falar dos meus problemas. A questão que desconheço é precisamente essa: a dimensão ou a real importância dos meus problemas. E mais: desconheço se conseguiremos chegar a alguma conclusão sobre eles. Sabe que eu tento falar deles, por vezes. Deito-me em cima da cama, e em voz muito baixa para não ser ouvido, falo do que estou sentindo, tento encontrar razões, explicações. Mas nunca me parece que vá além do óbvio.
_Mas algum problema o levou a decidir falar com uma pessoa, em vez de o fazer como acaba de contar, em cima da sua cama, em voz baixa.
_É verdade que sim. Mas não foi nenhum problema que se tenha vindo acrescir aos que já tinha. Nada disso. É uma indisposição com que tenho estado. Não sei bem especificar. Um aperto no peito. Como se me estivessem a espremer o coração. Às vezes até nem consigo falar, porque me dá a impressão de que ele se vai esvair em sangue, pela boca.
_Quando sente isso?
_Por exemplo, agora. Agora que tenho que lhe contar o que me tem acontecido.
_Mas consegue falar?
_Sim… consigo… mas sinto-me muito mal… entende?
_Penso que sim. Penso que sei ao que se refere…
_Não lhe chame ansiedade. Eu também sei o que é isso. E não é isso. É outra coisa. Ou talvez seja a mesma, mas em muito elevada dose.
_É a primeira vez que se sente assim hoje?
_Não. Não, doutora. Hoje, isto começou quando me levantei.
_Então conte-me.
_Foi por causa de um sonho que eu tive. Ontem à noite…
parou um pouco, para dar algumas passas mais longas no cigarro. Depois, assim prosseguiu
_Então foi isto: eu sonhei que estava… como direi?... numa espécie de festival ou de acampamento. Estavam lá muitos amigos meus, de fases diferentes da minha vida. Muitos não se conhecem uns aos outros. Mas ali estavam como se se conhecessem. O meu namorado estava lá também.
parou de novo para apagar um cigarro, e logo acendeu outro. Enquanto, a psicanalista toma algumas notas no caderno que tem à frente
_Bem, e então,a certa altura, como é costume acontecer nos sonhos, o cenário torna-se inconsistente com o anterior. Tinha-lhe dito que estávamos num acampamento a conviver… e por aí… mas depois, eu estava numa cama. Não lhe posso garantir, mas eu sentia a presença de pessoas à volta. Parece-me que o quarto em que a cama estava, e eu nela, era todo muito desfocado. Só a cama era nítida. Bem, e em cima da cama, estávamos eu, o meu namorado e outro rapaz, a fazer sexo.
_Quem era o rapaz?
_Não me parece que ele signifique alguma coisa. Era o Pedro, o meu antigo colega de carteira. Ficamos sentados um ao lado do outro em todas as aulas durante cinco anos. Era por ordem alfabética, eu e depois ele.
_E porque pensa que ele estava a fazer sexo consigo e com o seu namorado?
_Bem… ah… não sei. Eu e o meu namorado temos esse princípio. De que não vale a pena negar a atracção que sintamos por outras pessoas. Porque ela em nada afecta os sentimentos que há entre nós. Sexo é sexo. Pode nem ser mais nada do que isso. Portanto, por assim dizer, não há nada nisso de realmente imprevisto.
_Qual é, então, o imprevisto?
_Primeiro, e já que quer que eu considere o Pedro, o facto de ser o Pedro. O meu namorado não o conhece e mesmo eu já não o vejo há muito tempo. Ele não gosta de rapazes. E mesmo que gostasse, ele não era muito bonito. Não era realmente nada de especial, excepto…
_Excepto?
_Excepto os olhos que eram realmente lindíssimos. Azuis escuros. Profundos. Digamos que seriam um dos poucos pontos de interesse que ele tinha. De qualquer maneira, o grande problema do que eu sonhei não, foi, como aliás já lhe tinha dito, o Pedro.
nova pausa, algumas fumaças longas, o paciente mexe-se ligeiramente no divã, esconde a mão que tem desocupada atrás das costas, como se tentasse encolher
_Estávamos, portanto, sobre a cama, enrolados uns nos outros, beijos, abraços, por aí… a doutora percebe. E a certa altura, o meu namorado estende-se na cama, e, muito… ah… muito guturalmente… diz “enraba-me”. E eu fico a olhar e pergunto “eu ou o Pedro?”. E aí, ele, sem sequer me olhar, ele responde “o Pedro, claro!”
_Foi esse o problema? Sentiu-se preterido…?
_Não. Quando pensei nisto, primeiro pensei que sim… Mas… não foi isso. É que… bem… o meu namorado… o meu namorado não gosta muito do meu corpo. E… bem… aquilo foi como receber a real dimensão disso. Foi como se o problema, mais do que nunca, caísse em cima de mim. Ali estava eu, com ele, e com outro. Ele raramente tem esse tipo de comportamento comigo, de me pedir… guturalmente… alguma coisa… e, quando o tem, não é dirigido a mim.
_Ou seja, sente-se preterido… como eu disse…?
_Sim… bem… não é só isso. Não é só o facto de ele ter essa atitude… inflamada… para com outra pessoa. É também a consciência de que comigo ele não tem essa “paixão”… que comigo ele não sente vontade de… percebe?
_Portanto, sente que o priva de alguma coisa.
_Exacto.
_E foi aí que acordou?
_Não. Depois de ele responder aquilo, eu voltei a estar naquele… acampamento… e estava a caminhar. Havia pessoas a caminhar perto de mim, pessoas que eu conhecia… estavamos todos a ir na mesma direcção. E eu sabia onde íamos, apesar de não estar ninguém a falar disso…
_Onde?
_Íamos a um concerto. Da Brandi Carlile, num bar qualquer… Como eu dizia, iam pessoas conncosco, mas mesmo comigo, só vinha uma pessoa. A minha amiga Guida. É a minha amiga mais antiga. Confio nela. E no sonho também, porque estava a tentar contar-lhe o que se tinha passado com o meu namorado e o Pedro. Mas, quando ia começar a contar… acordei. O coração a bombear fortíssimo, uma dor de cabeça… e esta indisposição…
_Essa cantora… tem algum significado especial?
_Não… nem conheço muito dela. Apenas a música mais conhecida, “The Story”… deve estar a ver qual é, fazia a publicidade da Super Bock.
_Então e essa música? Está ligada a algum momento especial?
_Não… Quer dizer, no fundo, faz sentido. Ali estávamos, muitos “amigos”, com cervejas na mão… como na publicidade. Além disso, a música fala daquelas coisas comuns: as frustrações pessoais de uma pessoa que se atenuam com o amor… “All of these lines across my face tell you the story of who I am, so many stories where I have been, but these stories don´t mean anything when you´ve got no one to tell them to, it´s true, like I was made for you…”
_Muito bem… Disse então que acordou com essa indisposição de que fala. Passou?
_Não… durante o dia estive com o meu namorado, encontramo-nos com uma poeta que ambos admiramos. Foi uma conversa estupenda… Mas mesmo assim, eu tinha este aperto dentro me mim…
_Alguma vez tinha tido essa consequência de um sonho?
_Já… Uma vez… Não lhe sei relatar todo o sonho, raramente me lembro do que sonho, salvo em situações pontuais. Mas sei-lhe dizer o final, antes de acordar…
_Sim?
_Bem… eu estava deitado aos pés da cama do meu quarto na casa dos meus pais. Estava um pouco escuro. A luz da rua a entrar pela janela entreaberta, reconheço-a. Eu estava sentado aos pés da cama, e havia alguém deitado atrás de mim. Não sei quem era, mas era um corpo masculino, e quando falou, a voz era masculina também.
_Falou?
_Sim. Eu estava imóvel, sentado. O rapaz estaria a dormir. Mas a certa altura ficou sentado na cama, um pouco atrás de mim. Eu sentia-o acordado. E disse-me “Estou a ver a minha vida, a passar, à minha frente…”. E eu acordei, com o mesmo desconforto.
_Essa frase… O que significa?
_Há aquele mito que diz que no segundo antes da morte vemos a nossa vida inteira, segundo a segundo.
_Acredita nisso?
_Gosto de pensar que seja verdade. Mas não posso mesmo saber… De qualquer maneira, é o único sentido que essa frase tem para mim.
_O que o deixa indisposto é então a morte?
_Não. Penso que, colocando os dois sonhos que tiveram esse impacto em mim, o que realmente os une é o medo.
_Medo da morte?
_Não da minha. Da dos outros. Não tenho medo de morrer, não me preocupa morrer. Mas tenho medo que as pessoas de quem gosto morram.
_Mas não me disse que não conhecia a pessoa atrás de si?
_Sim. Mas pense… Estava deitado na minha cama. Eu sabia que ele estava, e continuava a estar ali, calmamente sentado. E, tendo em conta que estamos a falar num sonho… num agregado de sinais… tenho quase a certeza de que aquela pessoa ali deitada significaria alguém de quem eu gostava. Senão não estaria deitado na minha cama.
_E voltando ao seu sonho de ontem… Tantas coisas… O que depreende do que sonhou?
_Pensei que a psicanalista era a doutora…
_Sim. Mas já que me diz que se tenta psicanalizar sozinho, gostaria de ouvi-lo. Depois poderei intervir, se disso achar necessidade.
_Muito bem… para começar… o acampamento. Nunca acampei, a não ser para festivais de música. Só pode ser isso. O facto de depois estarmos a ir para um bar para um concerto confirma-o. Talvez que se tenha distorcido a noção de festival que tenho. Provavelmente distorceu-se, tendo em conta que uma cama surge algures. O facto de estarem lá tantos amigos ou supostos amigos… de fases diferentes da minha vida… terá talvez a ver com isso. Não consigo estar com eles no sentido pleno da palavra. Apenas nessas situações completamente informais. Ou de grandes grupos, onde a necessidade de conversas, pelo menos sérias, é menor. Mas havia também pessoas de quem realmente gosto, alguns amigos, o meu namorado. Porque não vou a esse tipo de eventos sozinho.
pausa. Novo cigarro. A psicanalista levanta-se e abre uma janela, um tanto indisposta com aquele cheiro a fumo. Ele prossegue, ignorando o som dos passos
_Depois… como lhe disse, a cama, o meu namorado, o Pedro. O que tinha a dizer sobre isso já disse. Ser preterido, para usar a sua palavra, privar o meu namorado de sexo em que ele realmente se sinta liberto no verdadeiro prazer. Eu como impedimento disso. Depois…
_Calma… Penso que se esqueceu de um detalhe. Disse-me que o quarto estava desfocado, mas conseguia sentir que estariam a ser observados.
_Ah… ainda bem que me lembra. Bem… é difícil. Assumindo que quem observava eram as pessoas que eu conheço e que estavam na primeira parte do sonho… É preciso ter em conta que não gosto deles. Portanto, eles estarem ali a ver-me ser preterido… Certamente representa uma humilhação. Suponho que seja isso. Humilhação. Talvez que também nos observemos pelos olhos de quem não gosta de nós e de quem não gostamos. Só assim se pode retirar algum prazer das situações realmente más. Só assim resistimos a elas, não é?
_Muito bem… continue…
_Na terceira parte, estamos a ir para o concerto da Brandi Carlile. É como se a segunda parte tivesse sido cortada a meio, mas tivesse acontecido na mesma. E eu estou consciente disso, procuro a minha amiga para lhe contar. Mas, no momento em que vou a contar acordo…
_Mal disposto. Que lhe diz isso?
_Exacto. Penso que isso tem a ver com a minha personalidade. Mais que atravessar as situações, elas tornam-se insuportáveis quando tenho que falar delas. Talvez que me sinta mais humilhado ainda. Ou mais torturado.
_Muito bem…
pequena pausa. Nenhum dos dois fala. Ele continua a fumar. Depois, é ela que fala
_Tinha-me dito que a sua relação com o seu namorado inclui relações com terceiros. Está realmente confortável com esta situação?
_Sim. Sim, não é esse o problema.
_Explique.
_Estou confortável com essa situação se é algo que os dois fazemos com outra pessoa. Não estou confortável se ele está a fazê-lo com outra pessoa e eu estou ali por obrigação, imposto. Ou então, como um adereço.
_Mas sexo com outras pessoas é sexo na mesma. Sente-se excluido por o seu namorado dizer que quer ser enrabado pelo outro?
_Também não. Aí, a doutora teria que, com toda a idiotice que o que eu vou dizer representa, estar lá. Tinha que ouvir a maneira como ele o disse. Como se realmente o seu interesse fosse, não eu, mas o Pedro.
_Como se a terceira pessoa fosse você.
_Sim. Esse o primeiro problema. O segundo foi o próprio acto de se deitar e lhe pedir que o enrabasse. O que nunca fez comigo. Nunca me pediu. Fazê-mo-lo quando eu pergunto se ele quer. Ou quando faço menção de o fazer.
_Portanto, se por um lado o problema foi ele o ter tratado como o terceiro, por outro lado o problema foi ele demonstrar uma paixão pelo outro que você não sente que incida em si, mesmo na vida real.
_Pois…
_Parece-lhe que essa situação seria transponível para a realidade?
_Não a entendo…
_Caso essa situação estivesse a decorrer não num sonho, mas na realidade, pensa que teria sido assim?
_Pois, não sei. Não aconteceu ainda irmos com outra pessoa. Mas o resto confirma-se. De facto, o meu namorado não demonstra grande prazer do meu corpo.
_Mas têm sexo.
_Sim. Mas penso que não seja necessariamente por causa do meu corpo. Mais pelo que podemos fazer dos nossos dois corpos.
_E não é isso o sexo?
_Também. Mas temos que ser realistas: não há um prazer pleno se o corpo de um, aos olhos do outro, é desagradável.
_Pode ser verdade. Mas já pensou que, e tratando o seu sonho como uma previsão da realidade efectiva, talvez não seja da natureza do seu namorado ser realmente tão “aceso” durante o sexo?
_E se for? Se for essa a sua natureza e ele a não tem comigo por causa do obstáculo que é o meu corpo?
_E se não for?
_Doutora, não sou grande adepto de charadas. E como lhe disse, a grande razão, agora o percebo, dos meus problemas, é o medo. A melhor maneira de resolver ou contornar um medo não é, penso, dizer que as coisas não se passarão da pior maneira, mas sim assumir que é da pior maneira que elas se vão passar. Pois se estamos a dizer que as coisas vão ser melhores do que eu imagino não estaremos realmente a enfrentar o meu medo, mas sim a ignorá-lo, dizendo que ele se não justifica.
_Bem visto. Reconheço-lhe algum talento para pensar…
_Ainda o grande problema é esse. Pensar de mais.
_Talvez. Mas vamos então supor que realmente a natureza do seu namorado é ser mais “aceso” no sexo, e que não o é consigo por causa do seu corpo.
_Pois.
_E assumamos também que numa situação triangular, o seu namorado efectivamente deixa essa natureza vir ao de cima através da presença de uma terceira pessoa. Como é que você fica?
_Como dizer? Fico… Revoltado. Ele não tem culpa que eu tenha o corpo que tenho. Mas gostava de ser eu a dar-lhe isso.
_Como é que vê essa relação do seu namorado consigo? Se me permite a observação, acho isso estranho. Não é gordo, não é feio…
_Concordo consigo. Não sou feio. Também não sou gordo. Já o fui. Isso deixa marcas. A forma que o corpo ganha é irreversível, fica sempre. Sou também um pouco flácido. Deixar de comer ou fazer dieta também não resolverá isso, apenas ginásio. Aliás, quando hoje me pesei, verifiquei que tenho quarto kilos a menos.
_E faz ginásio?
_Ainda não. Quero muito fazer. Mas não tenho tido paciência para procurar um ginásio perto de casa. Além disso, o amor não se define pela aceitação do outro, não como ele poderia ser, mas como ele é?
_É verdade. Mas também se define por cedências que melhorem a relação e a vida do outro. Ainda não percebi bem foi o problema do seu namorado com o seu corpo. Só me disse dele o historial…
_Acho, sinceramente, que ele não tem um problema com o corpo que eu tenho, mas sim com o corpo que eu não tenho. Penso que estará demasiado preso a uma ideia de corpo ideal, e não consegue gostar do meu por não corresponder.
_No seu caso, corresponde?
_Acredite que não, doutora. Em nada. Eu gosto de rapazes baixinhos, ele é da minha altura. Gosto de rapazes atléticos, ele é magro. Gosto de cabelos compridos, ele tem o cabelo curto. Gosto de olhos azuis, ele tem os olhos castanhos. Gosto de rapazes brancos, ele é moreno.
_E no entanto, isso não é obstáculo para si.
_Nenhum. Talvez que a pessoa que amemos seja afinal o contrário do que idealizávamos. Talvez deva mesmo ser assim, para nos ensinar a dificuldade.
_Dificuldade?
_Tem razão. Má escolha de palavra. Adversidade. Amamos a pessoa que nada tem a ver com o estereótipo que criámos para aprender que nada é linear.
_E ele não pensa assim?
_Acredita que nunca lhe perguntei? A única coisa que sei é que ele não gosta do meu corpo. Mas não consigo encontrar em mim nada que realmente faça do meu corpo tão horrendo assim que não consiga ser minimamente belo ou sensual.
_Talvez lhe devesse perguntar directamente isso.
_Talvez devesse. Mas para quê, se já sei que vou sair magoado?
_Vai?
_Vou. Talvez que o meu pânico à fala, à exposição dos problemas, se explique por aí mesmo. Mesmo sem saber qual será a resposta dos outros, já sei de antemão que eu é que vou sair magoado.
_Parece-me que fala com bastante facilidade dos seus problemas.
_Consigo é diferente. Não está aqui para me dar conselhos. Está aqui para me analisar. Não há uma relação pessoal entre nós. É quase como se, em vez de eu estar aqui, no seu consultório a desabafar consigo, estivesse a desabafar com uma folha de papel, escrevendo tudo isto.
_Porque não fala com ele sobre isto, mesmo assim?
_Talvez fale. Sabe que o facto de eu estar assim… com este aperto… torna tudo mais urgente.
_É?
_Completamente. Nunca me esqueço que a Amália dizia “Eu podia ser feliz… Mas, não sei… é uma coisa cá dentro…” às vezes sinto-me como ela.
_Muito bem. É chegada a minha vez de falar, e a sua de ouvir.

o candeeiro fita-me

O candeeiro fita-me de tal forma que fico
cego. A noite perpetua-se lá fora e eu estou dramaticamente
só. Diria mesmo que insuportávelmente morto
neste sofá envelhecido, a sonhar lentamente
com a lentidão do nosso rápido encontro.

Quando, há muito tempo, te tive encostado à parede do bar,
eu não podia prever que, agora,
todas as minhas palavras fugissem na tua direcção
e não me permitissem ver para além
de ti. Se deixar de escrever, desapareces.
E, sem ti, eu fico sozinho.

Não tenho uma noção de poema,
não tenho uma noção de nada, a não ser deste
vazio dentro de mim, continuamente assolado
pela memória dos teus olhos
em riste contra mim.

Choro. Quero que saibas que estou a chorar
enquanto os meus dedos martelam irritantemente
o meu peito e lhe arrancam estas palavras, porque
eu “estremeço/ no coração/
as letras vêm de lá
e da mão”, e é impossível que eu estremeça
mais do que isto. Não é possível
que mais letras saiam de mim, só tu existes,
só por ti
estremeço, no coração ou onde fôr.

Diz-me só
que te lembras de mim
e eu acalmo-me. Choro menos.
Não estremeço
e vejo-me livre
de tudo isto.

sábado, 4 de julho de 2009

shopping nightmare

Olho pela janela do escritório
e vejo apenas a solidão a crescer.

Ao sair lembrei-me que
precisava de roupa. Desagrada-me
ter que comprar mais. Mas fui.

Passei duas horas a experimentar
t-shirts, calças. A empregada
insistia em como certas peças
iam bem no meu corpo.
Mas a náusea era forte demais.
Acabei por comprar
o que ela me tinha recomendado.
Não tinha cabeça
para pensar por mim.

Cheguei a casa
vesti a roupa
olhei-me ao espelho
estava mais morto
mais triste
mais sentido
ainda que dentro
daquela roupa.

domingo, 28 de dezembro de 2008

teenage lust


O que me terá custado a luxúria? Não soube deixar de ser
adolescente e de querer ter todos na
minha cama. Não soube deixar de ser coração de
luxúria em vez de sangue em vez de sangue, o que me custou?:

Eis-me aqui, diante do espelho:
tenho idade para olhar para trás e ver o que há,
mas o que há é o que sempre houve: eu, ainda não diante
do espelho, diante do corpo nu deste rapaz loiro
a querer amá-lo até ao fim dos tempos
“olha que não é bem assim”, não foi, realmente,
não foi.
Eis-me diante do espelho:
sei como é bom ter o corpo nu enrolado noutro
corpo mais nu, qual de nós o mais nu? É bom roçar,
é bom tocar,
é bom ter tempo, mas o seu a seu tempo,
e este não é o tempo, então porquê? Porquê ainda
este comportamento incompreensível,

eis-me diante do espelho
a preto e branco e cheio de perguntas
electrónicas a ecoar cada vez mais alto o volume mata-me
em stereo ou surround,
com pequenas feridas a alastrar como alastra
um cancro em metásteses ou uma pequena
indisposição, façam favor de me dar uma aspirina,
eu aqui diante do espelho,
a vida inteira em super 8, agora que hei-de dizer
se a minha luxúria de adolescente nunca teve fim, e hoje sou eu,
vinte e três anos, quase vinte e quatro,
e ainda como se tivesse dezoito: dois ou três bares
em alta-definição
e agora um, e amanhã outro, e depois outro,
esta semana já foram três, acho que tenho cada vez menos esperma,
toma lá, quem te manda desperdiçá-lo, não achas que estás
em idade de ter juízo, não me parece, nem sei o que dizer,
tens-me aqui diante do espelho
em alta resolução os olhos sem resolução possível,
adolescentezinho para sempre,
aqui me tens, pronto para a morte. Porque quando se é
adolescente, sentem-se todas as coisas do mundo,
e está-se logo pronto para a morte,
quanto mais nos aproximamos da idade adulta, menos
preparados para a morte
em dolby digital que nos irá por um fim. Eu estou aqui,
diante do espelho,
absolutamente pronto para a morte:
digam-lhe que estou pronto para ela. Digam-lhe que sei
muito bem como ela é, e que de certeza que também
ela se lembra da minha cara, porque afinal,
juntos que já estivemos tantas vezes,
adolescente ou não, os vários encontros que tivemos
servirão para alguma coisa. Uma prece um tanto ao quanto
agridoce em seu nome, tantas odes afinal para
chamar pela velha amiga morte,
ela bem sabe que eu aqui estou
diante do espelho
em pro-tools
a saber bem que o meu destino está traçado,
é o único, logo eu, este insignificante adulto adolescente,
com vida para ser pessoa séria e a continuar a ser
o mesmo filho da puta com quem todos os colegas gozavam,
o que fode rapazes, o que é fodido por eles,
o que não quer saber de nós para nada,
o que ninguém quer saber dele, certamente a morte
se lembra disso,
digam-lhe que estou absolutamente
à espera dela e com pouca vontade de esperar mais,
digam-lhe que o psiquiatra me enche com três comprimidos por dia
e que já estou farto e que
preciso de um favor dela:
preciso que ela venha.

Mas, Henrique, não seria melhor mostrares estas tretas todas
ao tal psiquiatra? Talvez te façam falta mais comprimido,
vai-te foder que quem toma três também toma quatro, talvez te faça falta
um pouco de juízo, faz favor de te levantar daí,
em frente ao espelho o dia todo, és mesmo narcisista,
seu neurótico de merda, não era o que te chamava o teu primeiro
namorado, acho que era, deixa lá, não interessa, neurose
narcisista, escreve lá um poema sobre isto, não era como ele gozava
contigo? Acho que era, sai da frente do espelho
nunca te cansas de olhar para a mesma cara todos os dias
à espera que essa puta da morte venha ter contigo?
Nunca te cansas de cantar a mesma cantiga? Levanta-te
daí, diga o que lhe dói, é dor ou saudade que o peito lhe rói,
o que tem, o que foi, o que dói no peito

é que os meus homens partiram…




a itálico, citações de Pode Alguém Ser Quem Não É? de Sérgio Godinho

fotografia de Larry Clark, a quem roubei o título do poema

sábado, 20 de dezembro de 2008

desamor desvivido

De morte em morte percorri a vida
várias camas me viram morrer
nos inscientes calafrios em ferida
a abrirem-se, a deixar-me a sofrer

e acordar a medo a madrugada
e fugir de onde nunca estive
ou mágoa de caminho inusitada
o sonho morto que revive:

no cinema está escuro por fim
e ninguém dá por mim adormecido
a tentar salvar-me só a mim
antes de salvar o mundo perdido

dentro de mim ou dentro do mundo
ou de dentro de uma cidade escondida
a esfinge esconde-me o corpo ao fundo
olho-a nos olhos: eis-me em ferida.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

point of no return

Perdi a minha vida
a única lâmpada que tinha para me iluminar
partiu-se.

point of no return

Perdi a minha vida
a única lâmpada que tinha para me iluminar
partiu-se.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

we the innocent we the guilty we the fuck

Despite what you may be looking
for, there is only one thing you´ll
ever find:
crime.
These days, whilke we stuggle
for freedom or peace,
every move that´s made is
a crime.

No need for left, right or
any kind of anarchy. You´ll be
judged, sooner or later
for waking up in the morning:
the thief who robbed a bank
today wouldn´t,
if he hadn´t woken up.

Even I,

even I am a criminal, everyday
standing up for those who
are not guilty or innocent. No one´s
innocent. Yet. no one´s guilty.
The difference
is only in being judged by
some random step you
took one day. Call it
a crime.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

o dia passa,

Barras de tribunais, barras de prisões
todo o dia sou fico preso atrás de umas, à frente de outras
o tempo
não cura a podridão no sangue. Espirra-se um
bafo criminal, lodoso, gangrenado de
culpas e inocências por provar,
a palavra mexe-se, serpenteia entre os ouvintes,
uma plateia como um coro
à espera do poder. No interior destas salas
amadurece uma doença
sem farmácia. Um sexo desprovido de contacto ou contágio,
único,
horrendo e desfigurado, anos e anos, anos e séculos,
olha em frente o homem
vestido de batina preta, mas severo que um
padre.

Anuncia que o mundo
nunca existiu sem crime.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O culpado treme, ao falar

A família do assassinado implora
por justiça. O culpado clama insanidade,
estava insano quando esfaqueou o rapaz que ia
comprar pão. Não sabia, coitadinho.

O juíz dá razão ao culpado. É cego.
Há alguns dias atravessei a estrada para
ir tomar café ao bar da praia
e vi-o, com um cão. Ao percebê-lo cego,
percebi porque dera razão
ao culpado.

A família afoga-se agora em
calmantes, Valium 10 e Xanax,
a chorar em frente aos retratos mórbidos
do rapaz, sem culpa alguma que
o juíz precise de um cão para
andar na rua.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

repórter em campo

Já não sei como consigo adormecer
depois de tudo o que vejo ao longo do dia.

No escritório, mais um assalto à mão armada. Ao chegar
a casa, se ligo a televisão,
bancos foram assaltados, velhos foram burlados,
matou-se o director de uma empresa,
o suspeito fugiu,
fugiu porque não é suspeito, é culpado.

Vem o pivot pedir mais informações
a um repórter em campo. A população queixa-se,
querem segurança,
querem andar na rua sem medo de um tiro
ou de um sequestro. O governo esfrega as mãos,
encolhe os ombros, diminui as prisões.

E não sei quem está a enganar quem? O governo
engana as pessoas? Os suspeitos enganam
quem decide? Enganamo-nos todos?

Deito-me sem conseguir olhar nos olhos
o repórter do outro lado do ecrã. O que vejo,
todos os dias,
não me permite estar em campo, nem ver o sol. Penso apenas
em como é uma sorte
ter chegado a casa sem ter
sido baleado ou assaltado,
na melhor das hipoteses.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

encontrar o culpado

Crime: do Lat. crimens. S. m., transgressão, infracção grave de um preceito da lei ou da moral; delito, facto repreensível, infracção de um dever.

Só um pensamento na ordem de assuntos do dia
para ficar no relatório:
encontrar o culpado, ainda que talvez não haja culpado. Indiferente
o século, a morte impingida, o roubo, o tiroteio
sempre hão-de ficar, a pairar sobre as cabeças
dos incautos e disponíveis
para a massificação da realidade
que à noite, e com prazer,
vemos ficcionada nos episódios de CSI.

Pensa-se que tudo é assim:
rápido, eficaz, infalível e contínuamente correcto. Errado.

Encontrar o culpado é arrancar à inocência
quem por si só se arrancou. Depois chegará o juíz,
do alto do púlpito corrigindo,
benévolo,
o que neste país e nos outros há de errado. Condenável.
Entregamos este papel a quem sabe,
diz-se,
mas a verdade é também que
pelas ruas, ainda há quem morra
sem ter pedido.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

recurso IV

Com o mundo inteiro a pesar na garganta
saio do bar aos berros, a chorar
sem saber o que me aconteceu. Alguém me
atirou cá para fora, e me deixou
deitado na calçada molhada
pela chuva cessante.

Choro alguma palavra para cima dos paralelos,
arrasto neles a minha t-shirt manchada de cerveja
e de esperma de um rapaz que ficou lá dentro.

Sento-me no chão sem amparo algum
e procuro nos bolsos, com as mãos tropegas,
a última placa de haxixe que trouxe comigo. Não a consigo
encontrar, choro mais, a tremer de frio
e de medo
de alguma coisa
que me possa esperar no escuro da casa ao lado do bar.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

corpos de confidência II

Corpo: do Lat. corpus. S. m., qualquer porção limitada de matéria;a parte material de um ser animado; cadáver; busto; parte do organismo humano que compreende o tórax e o abdómen.

Foi no teu corpo que me deixei morrer
tão longe de casa. Tinha partido há semanas
com uma mochila, rodeado de amigos,
pensava que ia
a outros países beber e fumar droga. Mas afinal
fui morrer.

Foi no teu corpo e ninguém sabe
todos pensam que voltei, todos me falam como
se nada tivesse acontecido. Acham que eu
só bebi e fumei droga. Ninguém sabe como
depois.

Ninguém sabe como depois do teu corpo
nunca encontrei corpo algum onde me encontrasse de novo. Nem como
depois do teu corpo entrei pelo after-hours
camabaleando, sem saber sequer o meu nome.
Sem me lembrar que não me percebiam. Pedi um Safari
e depois muitos outros. Falei com todos os que se
sentaram junto a mim, sem que eles me percebessem.

Foi no teu corpo e ainda deves viver em Riga,
carregando o meu cadáver contigo,
todos os dias sem perceberes.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

corpos de confidência I

Nunca falei do primeiro homem com quem
me deitei.
Nunca contei a ninguém que me doeu
imenso
quando o seu corpo se intrometeu
violentamente no meu.

Nunca confidenciei a ninguém
que o amava
e que ele nunca me amou. Acho que nunca
ninguém.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

recurso III

Pela estrada
me afasto.

Pela estrada
fico mais longe do quarto
em que incansável, num desespero anormal,
te rasguei as roupas
por temer as tuas palavras.

Nem sabia o que te dizer
se me perguntasses. Cada vez que gemia,
o que queria era chorar.
Tocava-te os seios com força, queria que te doesse
como me doía a mim
que não me amasses. Que ninguém me amasse.

Pela estrada
vou sem que ninguém me ame. Agarro o volante como se agarrasse
a vida. Perder o controlo do carro.
Perder a vida.

domingo, 17 de agosto de 2008

recurso II

Rota imprecisa de especiarias, algo estranhas
as ruas
de Riga estendiam-se debaixo dos meus pés
e tu, completamente absorto do mundo
e estranho a mim,
de pé,
cigarro na boca, mais belo do que a própria beleza,
exibindo o teu corpo mais que perfeito
o teu cabelo loiro quase de ouro
a voar com o vento
para a esquerda.
Como aproximar-me de alguém
que é mais belo
do que a beleza? Eu, olhos azuis,
cabelo preto,
um ar triste que ninguém não percebe,
como agarrar com as mãos o teu
sorriso
prendê-lo eternamente?
Impossível.
Contentei-me em ter-te o corpo
nessa noite
e não mais
te ver. Pensar em ti,
sem saber ao certo qual o teu nome
pensar no que fiz contigo
e no que não fiz.
Trazer-te comigo
para sempre.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

recurso I

Tão desenfreada a forma
como de mim procuras tirar as nuvens,
simulando.

Se toda a tarde te esperei
foi apenas porque só tu encontras
essas nuvens em mim.

Outros encontrarão outras,
mas nuvens nenhumas
me é tão bom dar, como as que
dou a ti.

Gemo o teu nome
brevemente
mas apenas para que saibas que te
quero. Quis de ti
a alta voltagem, uma perigosa
erupção, a reluzir sobre os músculos
da minha barriga.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

profissões várias III

Doeu-me a cabeça todo o dia no trabalho. Alguém deve
ter instalado um virus no computador
porque sempre que o olhava, a cabeça doia-me mais.

A secretária trouxe-me um
copo de
água e um comprimido. Não sei
de que era, mas a dor de cabeça
não passou.

Saí e atravessei a cidade de carro
com a cabeça a doer muitíssimo.

Ao chegar a casa, encontrei a minha cama
por fazer e deitei-me, vestido com o meu
fato e calçado com os meus mocassins que
detesto. Adormeci imediatamente
e sonhei com o computador
portanto, quando acordei
a cabeça doía-me ainda mais.

Saí e fui jantar a um restaurante pequeno que
está aberto até tarde. Comi uma pizza pequena
e a dor de cabeça passou. Peguei no telemovel e liguei à
minha secretária, a avisá-la que a próxima
vez que me doesse a cabeça tinha que me dar uma pizza.

No dia seguinte não me doeu a cabeça.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

profissões várias II

Nunca esqueci
o empregado da padaria
de Riga. Penso nele
todos os dias
e na rua estreita do bar.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

profissões várias I

Quando comecei a falar com ela, disse-me que
tinha que ir para a igreja. Era freira laica.

Pedi-lhe que ficasse um
pouco mais, ofereci-lhe um café.
Depois do café,
ofereci-lhe um copo.
Depois do copo,
ofereci-lhe outro copo.
Depois do outro copo,
ofereci-lhe a minha cama.

Íamos pela rua, uma senhora disse
Boa noite, irmã...
ela riu. Eu também ri.

Em minha casa, fizémos amor. Era
freira laica, e quase me rasgava
a roupa para me encontrar a pele.

Na manhã seguinte, acordei com
a sua voz a rezar, agarrada ao terço,
e a olhar o meu púbis.

domingo, 10 de agosto de 2008

o zoo III

Sem a certeza absoluta de estar vivo, estalo os ossos
dos dedos das mãos e ouço o som
com uma certa repulsa. E imagino os meus dedos
a serem arrancados, como se arranca a
dignidade a quem neste jardim tenta plantar outras
ideias.

Pelas ruas encardidas de lixo, as
varredeiras inventam dialectos em que palavrões
não são palavrões, são formas de discutir
política. Nas mesmas ruas, os casalinhos
fazem o seu freakshow, beijam-se apaixonadamente
para se separarem tumuluosamente no
dia seguinte.

Nos cafés, os empregados querem matar
os clientes, atiram com as chávenas e esquecem-se
dos pacotes de açúcar. As pessoas olham-se,
umas com nojo, outras a querer conversa,

há ainda as que lêem, provavelmente
porque querem saír deste jardim subterrâneo
onde até o sol tem medo
de existir.

sábado, 9 de agosto de 2008

sexos VII

Sentei-me num banco de jardim em Riga
e não via nada a não ser o empregado da padaria
a fumar cá fora, à minha frente. Já me tinha apaixonado
quatro vezes. Mas nunca
assim.

Falei com ele.
Não percebia inglês, português muito menos. Percebeu
a minha mão na sua cara. Encontrou-se comigo
nessa noite, num bar. Não chegámos a ir
à casa dele ou ao meu
quarto de hotel. A ruela do bar serviu. Mas ainda
estou apaixonado por ele,

três anos mais tarde.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

o zoo II

Dentro do centro comercial as pessoas
sangram lágrimas em frente às montas. Querem
e não podem. Frustração maior poderá haver
do que trabalhar e não poder ir a todas estas lojas? Do que
ver outras pessoas entrarem e nós não?

Na zona da alimentação os
empregados têm um olhar clínico como
se julgassem todos os que comem. Grupos de amigos
comem falando alto, velhinhos fazem um esforço
por mastigar, um executivo fala ao telemóvel
e o hamburger não leva a mal ser ignorado.

Nos elevadores, cabe tudo: carrinhos de bebés, sacos de
compras, e até pessoas. Ficam todos a olhar para
o tecto, porque é má educação falar num elevador. Ninguém
vai à loja que fica
em frente ao elevador no piso mais baixo
porque é uma livraria.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

sexos VI

Ia no metro, colado a mim. Eu ia pagar a conta
da água, ele ia para o Estádio. No entanto
apalpei-lhe o rabo. Deu-me a mão
e não fui pagar nesse dia.

Seguimos para casa dele, uma casa pequena e fria e húmida
e mal decorada, mas que tinha um sofá. Ele impôs
a televisão, enquanto a sua boca
envolvia a minha
volúpia. E o comentador
dizia "golo", enquanto eu
marcava.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

o zoo I

No nosso ninho, os animais vivem ao monte
e não dão nada a ninguém. Os pássaros acabam
todos no serviço de psiquiatria, as lesmas e os vermes
mandam em tudo, os corredores
não saem do sítio.

Lodo com encrustações de esperma
a germinar brutalmente, sem que seja conveniente.
Mas tudo cresce. As maternidades
oferecem pulseiras (Parecem as barracas dos ciganos
nas ruas da baixa.), e os notários tomam
nota dos nomes que uns querem para outros.

No nosso ninho, os animais morrem devagar
e enquanto não morrem,
aumentam a morte que polui
tudo.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

sexos V

Esta noite estou sozinho. Comecei por
fazer um charro. E fumei-o sozinho porque não tenho ninguém
que o fume comigo.
Dizem-me que eu sou como o Henry
Miller. Por mais que foda, não consigo ter
ninguém. Neste país ninguém tem ninguém
por isso não quero saber.

Depois de ter fumado o meu charro, fui para a varanda
ver o mar. Já não se via nada, claro. Um ar crivado de
gritos chegava desde a esplanada da praia,
onde me apeteceu ir.

Fui.
Sentei-me sozinho, sem dar por nada. Tomei um gin tónico com limão
e depois uma cerveja e depois um Licor Beirão. Depois
apeteceu-me masturbar. Fui para o areal e masturbei-me. Quando
estava quase a acabar, reparei que ao meu lado,
estavam duas pessoas
a procriar, como deus manda e o governo também.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

sexos IV

A luz solar entrou-me
pelos olhos como
uma flecha. Abri-os e lá estava ela, deitada ao meu lado,
muito adormecida.

Levantei-me e
fiquei a olhá-la, sentei-me nu no parapeito da janela, de costas para Riga, a fumar
um cigarro de mentol que
lhe tirei do maço, só para chatear. Quando acordou, ficou a olhar-me.
Provavelmente achou-me
feio, ainda que não tivesse achado
o mesmo na noite
anterior. Levantou-se e barafustou por causa do cigarro
que lhe tirara. Madei-a foder em português,
e ela não percebeu.

Olhou-me irritada, a perguntar o que
dissera. Disse, em inglês, que
lhe tinha dito bom dia.

domingo, 3 de agosto de 2008

sexos III

Eras o homem mais atraente dentro do bar.
A luz parecia ir morrer
ao teu casaco de couro, para te iluminar
a cara.

Riste-te quando
me aproximei
de ti. No entanto, não riste
quando te encostei à parede da casa-de-banho
e te beixei as calças para te enrabar.

Tinha tanta inveja de ti
por seres tão
bonito e por te
rires,
que quase te matava enquanto te amava.

E não sabia nada.
Soube mais tarde.
Pediste-me o meu número, e eu
ri-me. Disse um palavrão
e fui-me embora,
entrei pela noite e
nunca mais saí.

sábado, 2 de agosto de 2008

sexos II

Há muito tempo que não te achava tão bonita
como na noite em que quase morreste.

Eu via-te deitada na maca
a entrar
para as urgências, e nem estava a perceber bem
o que se passava.

Sei que, no momento em que
a tua cabeça quase desaparecia
no limiar da porta, pensei que eras muito bonita.
E foi como se uma garça tivesse pousado
nos meus dedos. E eu não a quisesse deixar voar.

Acordaram-me na manhã seguinte para me dizer que ias ficar
bem. E eu tinha adormecido
na sala de espera, encostado à fonte de água,
e tinha sonhado contigo, a correr para fora do hospital,
com uma garça pousada no ombro.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

sexos I

Era uma noite poeirenta, afogada no sabor
da terra e no cheiro a charro. A tua mão pousou
com força no meu rabo, enquanto olhavas para mim.

As pessoas não viam, estavam distraídas.

Dentro da tenda, acendeste-me um charro
e fodi-te toda a noite. Nunca mais te vi,
e hoje lembrei-me de ti, e da tua mão, e do teu charro, e gostava
de te telefonar. Mas não me deste o número.

Reencontrar-te-ei daqui a muitos
anos, talvez, e nem saberei que és tu.
De novo a tua mão pousará
no meu rabo, de novo me acenderás
um charro, e de novo te foderei.

Toda a noite.