domingo, 28 de dezembro de 2008

teenage lust


O que me terá custado a luxúria? Não soube deixar de ser
adolescente e de querer ter todos na
minha cama. Não soube deixar de ser coração de
luxúria em vez de sangue em vez de sangue, o que me custou?:

Eis-me aqui, diante do espelho:
tenho idade para olhar para trás e ver o que há,
mas o que há é o que sempre houve: eu, ainda não diante
do espelho, diante do corpo nu deste rapaz loiro
a querer amá-lo até ao fim dos tempos
“olha que não é bem assim”, não foi, realmente,
não foi.
Eis-me diante do espelho:
sei como é bom ter o corpo nu enrolado noutro
corpo mais nu, qual de nós o mais nu? É bom roçar,
é bom tocar,
é bom ter tempo, mas o seu a seu tempo,
e este não é o tempo, então porquê? Porquê ainda
este comportamento incompreensível,

eis-me diante do espelho
a preto e branco e cheio de perguntas
electrónicas a ecoar cada vez mais alto o volume mata-me
em stereo ou surround,
com pequenas feridas a alastrar como alastra
um cancro em metásteses ou uma pequena
indisposição, façam favor de me dar uma aspirina,
eu aqui diante do espelho,
a vida inteira em super 8, agora que hei-de dizer
se a minha luxúria de adolescente nunca teve fim, e hoje sou eu,
vinte e três anos, quase vinte e quatro,
e ainda como se tivesse dezoito: dois ou três bares
em alta-definição
e agora um, e amanhã outro, e depois outro,
esta semana já foram três, acho que tenho cada vez menos esperma,
toma lá, quem te manda desperdiçá-lo, não achas que estás
em idade de ter juízo, não me parece, nem sei o que dizer,
tens-me aqui diante do espelho
em alta resolução os olhos sem resolução possível,
adolescentezinho para sempre,
aqui me tens, pronto para a morte. Porque quando se é
adolescente, sentem-se todas as coisas do mundo,
e está-se logo pronto para a morte,
quanto mais nos aproximamos da idade adulta, menos
preparados para a morte
em dolby digital que nos irá por um fim. Eu estou aqui,
diante do espelho,
absolutamente pronto para a morte:
digam-lhe que estou pronto para ela. Digam-lhe que sei
muito bem como ela é, e que de certeza que também
ela se lembra da minha cara, porque afinal,
juntos que já estivemos tantas vezes,
adolescente ou não, os vários encontros que tivemos
servirão para alguma coisa. Uma prece um tanto ao quanto
agridoce em seu nome, tantas odes afinal para
chamar pela velha amiga morte,
ela bem sabe que eu aqui estou
diante do espelho
em pro-tools
a saber bem que o meu destino está traçado,
é o único, logo eu, este insignificante adulto adolescente,
com vida para ser pessoa séria e a continuar a ser
o mesmo filho da puta com quem todos os colegas gozavam,
o que fode rapazes, o que é fodido por eles,
o que não quer saber de nós para nada,
o que ninguém quer saber dele, certamente a morte
se lembra disso,
digam-lhe que estou absolutamente
à espera dela e com pouca vontade de esperar mais,
digam-lhe que o psiquiatra me enche com três comprimidos por dia
e que já estou farto e que
preciso de um favor dela:
preciso que ela venha.

Mas, Henrique, não seria melhor mostrares estas tretas todas
ao tal psiquiatra? Talvez te façam falta mais comprimido,
vai-te foder que quem toma três também toma quatro, talvez te faça falta
um pouco de juízo, faz favor de te levantar daí,
em frente ao espelho o dia todo, és mesmo narcisista,
seu neurótico de merda, não era o que te chamava o teu primeiro
namorado, acho que era, deixa lá, não interessa, neurose
narcisista, escreve lá um poema sobre isto, não era como ele gozava
contigo? Acho que era, sai da frente do espelho
nunca te cansas de olhar para a mesma cara todos os dias
à espera que essa puta da morte venha ter contigo?
Nunca te cansas de cantar a mesma cantiga? Levanta-te
daí, diga o que lhe dói, é dor ou saudade que o peito lhe rói,
o que tem, o que foi, o que dói no peito

é que os meus homens partiram…




a itálico, citações de Pode Alguém Ser Quem Não É? de Sérgio Godinho

fotografia de Larry Clark, a quem roubei o título do poema

2 comentários:

Graça Martins disse...

Este poema é muito forte. Brutal. Revela uma crise existencial terrível.
Uma crise de valores que todo o ser humano acaba por viver. Uns chegam lá mais cedo que outros, mas todos atravessarão essa fronteira. Parabéns. Vai sobreviver. Está a limpar a alma do lodo entranhado. Tem de escrever mais poemas destes. Todos aprendemos com estas palavras.
Aliás este blog é muito interessante. É feito de palavras mas revela uma diversidade extraordinária ao nível emocional, que nunca será monótono.
Um abraço Henrique Sansão.

Graça Martins disse...
Este comentário foi removido pelo autor.